quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Tomei a pílula azul

Faz tempo que não trabalho diariamente. Escolha minha. 
Como eu sempre disse quero o timão* da minha vida, pois o meu (nosso) tempo é único e meus interesses são muitos.
(*para os corinthianos vou explicar: a roda do leme, não o aumentativo de time)

Não que eu tenha dinheiro ou qualquer outra facilidade, apenas acho que é mais lógico viver com simplicidade para ter o máximo de tempo para mim, portanto, mais tempo para ler um bom livro, ouvir boa música, assistir um bom filme, coçar o saco na rede da sacada, refletir sobre o mundo, entrar na minha oficina e fazer umas pecinhas ou, pura e simplesmente, contemplar o mar.

O fato foi que passei um trabalho (desenvolvimento de um site institucional) a um amigo que estava precisando de grana e ele simplesmente me enrolou semanas até que pulou fora.
Compreendo, em parte, suas explicações, mas o fato é que se eu não tivesse a total confiança do contratante e algum tempo reserva eu poderia ter ficado em maus lençois.

Desenvolvo software**  há muitos anos e fazer uma página da internet do estilo exigido poderia ser moleza para mim, mesmo estando meio "enferrujado" no assunto e, ainda por cima, faturar um troco extra. Preferi ajudar o dito cujo e, bem, o caldo entornou...
(**software no meu caso são desde programas que rodam em embarcados -  ex: a BIOS do seu computador, o sistema do seu celular, o programa para o controlador de uma câmera IP, o firmware do alarme da sua casa, etc - até os tradicionais aplicativos para PC/ruWindows)


Mas o que importa é que resolvi encarar de fazer o trabalho. Tomei a pílula azul.
Respirei fundo, tapei o nariz e vamos que vamos.
Uns dias de estudo e outros de execução.

A metáfora do filme dos irmãos (ou irmãs) Wachowski está meio gasta mas ainda é boa. O psicanalista lacaniano Jorge Forbes gosto muito também... 

Nesses dias nada me passava pela cabeça.
É acordar, ter aquelas providencias comuns e partir pro trabalho. 
Mesmo não precisando sair de casa (o que pioraria tudo), a noite era só cansaço e certo anestesiamento mental (Confortably Numb total).

Até certo ponto é compreensível o discurso comum do "gostar" de trabalhar e "amar" o que faz. O trabalho é um psicotrópico numa forma socialmente aceita e incentivada, com ele nada mais importa no mundo, muito menos o se deparar consigo mesmo.

É acordar, cumprir "coisas comezinhas", partir para o trabalho, voltar, "cumprir outras coisas comezinhas" e dormir. Depois de uns dias ir a um local onde os viciados se encontram (a cracolândia ou, como preferir a metáfora, o templo) - o shoping center - para trocar aqueles papeis ou valores virtuais conseguidos por algumas quinquilharias que amenizam essa completa ausência de sentido, ou ainda fazer reuniões sociais onde se fala (tchan!) de trabalho.

A sensação é a mesma que um Rivotril, um monte de pinga ou coisa semelhante. Um anestesiamento mental, um agradável torpor. Nada "desagradável" (nem de "agradável") passa pela cabeça pois trabalho é só trabalho, sem adjetivos morais (não é a toa que essa palavra não existe em inúmeras outras culturas). 
Nenhum questionamento. Nada. 
Trabalhando somos um nada que produz riqueza para alguns eleitos e porcarias para nos iludir.

(Não existe ficção desconectada da realidade. Lembremos que a arte imita ou interpreta a vida)

O efeito colateral é inevitável: nada criativo se faz; nada que amplie os horizontes se faz; nem sequer um tempo em silêncio contemplativo resta.

Talvez seja estranho para quem vive assim e assume essa ideologia (do trabalho/consumo) sem pestanejar, mas o incrível é que é idêntico.
Admito, é tentador.
Como qualquer droga que te afaste de você mesmo e do seu entorno, o trabalho é tentador.

Mas costumo deixar a pílula vermelha sempre na minha frente para quando eu começo a perder o controle...




quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Somos todos perdedores

Levante a mão quem está de saco cheio de histórias edificantes.

Com o final dos jogos olímpicos resta um fio de esperança de uma redução desses discursos.

"Quem sonha sempre alcança...",  "todos podem vencer...", "basta querer e focar...", blablabla.

O esporte, como não poderia deixar de ser, reflete o panorama social, e assim, sua ideologia.
Perdeu-se o esporte como atividade de socialização e confronto simulado saudável, para se ter um vencedor e um séquito de vencidos.
Criou-se o esporte de "alto nível" ou "profissional" onde, mais uma vez, criam-se canais para o escoamento de riquezas no tradicional sistema de convergência de capital.

Um mar de cidadãos gerando lucros exorbitantes para meia dúzia de indivíduos, em especial cartolas e patrocinadores, sem praticamente (ou totalmente) nenhum retorno a não ser uma histeria temporária que alivia frustrações e cria uma suposta identificação grupal.

Panem et circenses do ultraliberalismo. Um circo pago e um pão caríssimo e de má qualidade.



E a falácia da meritocracia desfila soberana, colocando a culpa sempre no "perdedor", como se os demais competidores "quisessem menos" ou "sonharam com menos intensidade".

É como o milagre religioso.
Claro que ele acontece, se não acontecer para você é porque você não teve fé o suficiente ou não foi abençoado.

Estranho é que nunca vi ou ouvi relatos confiáveis de um braço ou perna que crescem novamente num amputado.
Talvez nenhum deles tenha fé o suficiente...

Numa entrevista recente, Zygmunt Bauman se diz um pessimista a curto prazo e otimista a longo prazo. O caso incide em se o 'curto prazo' irá viabilizar algum 'longo prazo', ainda que ambos sejam conjecturas.
Supondo um 'curto prazo' entre quatro ou cinco gerações (que em termos históricos é um pulo) posso garantir que o otimismo passa a habitar a grande zona da ignorância e fatalmente da inexistência.

"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

Eu seria muito hipócrita (para não dizer filho da puta mesmo) se eu falasse para meu filho (se ele existisse) que basta ele sonhar e trabalhar arduamente para atingir seus objetivos.
O mundo atual foi feito para que esses burricos que correm atrás da cenoura carreguem os 1% nas costas, e a nossa "cenoura" são esses discursos edificantes e meritocráticos.


Não nego os méritos das pequenas conquistas nem a existência de uma ínfima amostragem de indivíduos que romperam o sistema de castas sociais, mas afirmar isso como realidade social e sistema justo e igualitário é uma insanidade.

Se até o desejar e o sonhar são aprendidos (vamos com Sartre), nada mais interessante que perpetuar uma ilusão do "pensar positivo", da "fé inabalável" e atualmente, das "energias positivas".



No fim todos falhamos. Somos todos perdedores.
Os maiores tiranos também foram depostos e/ou degolados pelos seus oprimidos e explorados, mas até lá muita desgraça é feita.
Ao menos gostaria de ouvir menos balelas e não ser obrigado a votar em quem me é oferecido na outra falácia: a de que vivemos numa democracia.