terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Comunidade, com Bauman

Uma obra digna de... bem, Bauman. Dispensa apresentações.

Algo pertinente no microcosmo das comunidades intencionais, ainda que, evidentemente, sua análise seja muita mais ampla, trazendo inclusive as origens e evolução do capitalismo (não criança, não há nada de "natural" no capitalismo...).

Enfim, demostra por que o microcosmo (as comunidades intencionais) não pode ser a trincheira "dos que rezam pra esse, esses ou nenhum deus"; "dos que comem isso ou aquilo"; "dos adeptos das 'epiritualices' new age"; e todos os outros guetos.
Se a comunidade intencional não for o berço político de alternativas (acima de tudo realmente plurais) e não "casernas" com o objetivo de isolar os "moralmente superiores", o que mais nos restará?!



Não tenho nenhum benefício econômico direto ou indireto com a partilha desse conhecimento.
Aliás, duvido que o próprio autor condenasse essa divulgação se estivesse vivo.


Uns pitacos:

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Para dizê-lo de maneira curta e grossa: a emancipação de alguns exigia a supressão de outros. E foi isso exatamente o que aconteceu: esse acontecimento entrou para a história com o nome um tanto eufemístico de “revolução industrial”. As “massas” tiradas da velha e rígida rotina (a rede da interação comunitária governada pelo hábito) para serem espremidas na nova e rígida rotina (o chão da fábrica governado pelo desempenho de tarefas), quando sua supressão serviria melhor à causa da emancipação dos supressores. As velhas rotinas não serviam para esse objetivo — eram autônomas demais, governadas por sua própria lógica tácita e não negociável, e por demais resistentes à manipulação e à mudança, dado que excessivos laços de interação humana se entreteciam em toda ação de tal modo que para puxar um deles seria preciso mudar ou romper muitos outros. O problema não era tanto levar os que não gostavam de trabalhar a habituar-se com o trabalho (ninguém precisava ensinar às futuras mãos da fábrica que a vida significava uma sentença de trabalho duro), mas como torná-los aptos a trabalhar num ambiente novo em folha, pouco familiar e repressivo.

Para que se adaptassem aos novos trajes, os futuros trabalhadores tinham que ser antes transformados numa “massa:” despidos da antiga roupagem dos hábitos comunitariamente sustentados. A guerra contra a comunidade foi declarada em nome da libertação do indivíduo da inércia da massa. Mas o verdadeiro resultado — ainda que não dito — dessa guerra foi o oposto do objetivo declarado: a destruição dos poderes de fixar padrões e papéis da comunidade de tal forma que as unidades humanas privadas de sua individualidade pudessem ser condensadas na massa trabalhadora. A “preguiça” inata das “massas” não passou de uma (débil) desculpa. Conforme argumentei em Work, Consumerism and New Poor [Trabalho, consumismo e novos pobres] (1998), a “ética do trabalho” do início da era industrial foi uma tentativa desesperada de reconstituir, no ambiente frio e impessoal da fábrica, através do regime de comando, vigilância e punição, a mesma habilidade no trabalho que na densa rede de interação comunitária era alcançada de modo “natural” pelos artesãos e outros trabalhadores.

O século XIX, dos grandes deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos (e também de tentativas desesperadas de reencaixar e reenraizar) chegava a seu fim quando Thorstein Veblen 11  falou em defesa do “instinto do trabalho bem-feito” aparentemente extinto, que “está presente em todos os homens” e “se afirma nas situações mais adversas”, para tentar reparar o dano. “Instinto de trabalho bem-feito” foi o termo que Veblen escolheu para um “gosto natural pelo trabalho efetivo e um desapreço pelo esforço fútil”, em sua opinião presente em todos os humanos. Longe de ser naturalmente preguiçosas e avessas ao trabalho, como insistia Freud em uníssono com uma longa série de críticos e resmungões, as pessoas tinham, muito antes que começassem as reprovações e a pregação, um senso do mérito da utilidade e da eficiência e do demérito da futilidade, desperdício e incapacidade... O instinto do trabalho bem-feito se expressa não tanto na insistência sobre a utilidade substancial quanto na rejeição à impossibilidade estética do que é obviamente fútil.

Se todos nos orgulhamos de um trabalho bem-feito, também temos, é o que sugere Veblen, uma repulsa inata pela labuta sem propósito, pelo esforço fútil, pela azáfama sem sentido. Isso era também a verdade das “massas”, acusadas desde o advento da moderna indústria (capitalista) do pecado mortal da indolência. Se Veblen está certo e a relutância em trabalhar viola os instintos humanos, então algo foi feito, de modo resoluto e forçado, para que a conduta “real” das “massas” desse credibilidade à acusação de indolência. Esse “algo” foi o lento mas inexorável desmantela-mento/desmoronamento da comunidade, aquela intrincada teia de interações humanas que dotava o trabalho de sentido, fazendo do mero empenho um trabalho significativo, uma ação com objetivo, aquela teia que constituía a diferença, como diria Veblen, entre o “esforço” (ligado aos “conceitos de dignidade, mérito e honra”) e a “labuta” (não ligada a qualquer daqueles valores e portanto percebida como fútil).

Segundo Max Weber, o ato constitutivo do capitalismo moderno foi a separação entre os negócios e o lar — o que significou ao mesmo tempo a separação entre os produtores e as fontes de sua sobrevivência (como acrescentou Karl Polanyi, invocando o insight de Karl Marx). Esse duplo ato libertou as ações voltadas para o lucro, e também aquelas voltadas para a sobrevivência, da teia dos laços morais e emocionais, da família e da vizinhança — simultaneamente esvaziando tais ações de todo o sentido de que eram, antes, portadoras. O que costumava ser um “esforço” nos termos de Veblen virou “labuta”. Já não era claro para os artífices e artesãos de ontem o sentido do “trabalho bem-feito”, e não havia mais “dignidade, mérito e honra” que decorressem dele. Seguir a rotina sem alma do chão da fábrica, sem ser observado pelo companheiro ou vizinho, mas apenas pelo desconfiado capataz, obedecer aos movimentos ditados pela máquina sem chance de admirar o produto do próprio esforço, e muito menos de apreciar sua qualidade, tornavam o esforço “fútil”; e um esforço fútil era o que o instinto do trabalho bem-feito levava os humanos a detestarem todo o tempo. E esse tão humano desgostar da futilidade e da falta de sentido é que era em realidade o alvo da acusação de preguiça formulada contra os homens, mulheres e crianças, afastados de seu ambiente comum e sujeitos a um ritmo que não determinavam nem ao menos compreendiam. A suposta “natureza” das mãos de fábrica era responsabilizada pelos efeitos da não-naturalidade do novo meio social. O que os gerentes da indústria capitalista e os pregadores morais que corriam em sua ajuda queriam através da “ética do trabalho” que projetavam e pregavam era forçar ou inspirar os trabalhadores a desempenharem as “tarefas fúteis” com a mesma dedicação e abandono com que costumavam perseguir o “trabalho bem-feito”. 

John Stuart Mill assim resumiu a disposição dominante da época (de que se ressentia profundamente): 'A sina dos pobres, em tudo o que os afeta coletivamente, era controlada para eles e não por eles... Compete às classes mais altas pensarem por eles, e assumir a responsabilidade por seu destino... [para que possam] resignar-se... a uma verdadeira despreocupação, repousando à sombra de seus protetores...
Os ricos devem ficar in loco parentis dos pobres, guiando-os e sujeitando-os como crianças.'

Olhando com ironia e ceticismo a fúria com que os reformadores e revolucionários desmantelavam os arranjos sociais existentes, Alexis de Tocqueville sugeria que, ao declarar guerra ao “atraso” e “paroquialismo” da sociedade camponesa-artesanal, a classe empresarial emergente estava chutando um cavalo morto; pois a comunidade local estava em avançado estado de decomposição muito antes do início da construção da nova ordem. Isso bem pode ter acontecido, mas qualquer que fosse seu estado de putrefação, a comunidade local continuava a ser percebida como “perigosamente poderosa” durante os longos anos que durou a adaptação dos camponeses e artesãos à nova disciplina das fábricas. Essa sensação dava força ao fervor e ao engenho com que os donos e os gerentes da indústria lutavam para controlar a conduta de sua força de trabalho e para sufocar toda manifestação de espontaneidade e livre arbítrio. 

Duas tendências acompanharam o capitalismo moderno ao longo de toda sua história, embora sua força e importância tenham variado no tempo. Uma delas já foi assinalada: um esforço consistente de substituir o “entendimento natural” da comunidade de outrora, o ritmo, regulado pela natureza, da lavoura, e a rotina, regulada pela tradição, da vida do artesão, por uma outra rotina artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. A segunda tendência foi uma tentativa muito menos consistente (e adotada tardiamente) de ressuscitar ou criar ab nihilo um “sentido de comunidade”, desta vez dentro do quadro da nova estrutura de poder.

A primeira tendência atingiu seu ponto culminante por volta do começo do século XX com a linha de montagem e o “estudo do tempo e do movimento” e da “organização científica do trabalho” de Frederick Taylor, que pretendia separar o desempenho produtivo dos motivos e sentimentos dos trabalhadores. Os produtores deveriam ser expostos ao ritmo impessoal da máquina, que estabeleceria o ritmo do movimento e determinaria qualquer gesto; não sobraria espaço, nem ele deveria ser reservado, para a escolha pessoal. O papel da iniciativa, da dedicação e da cooperação, mesmo para as “aptidões vivas” dos operadores (preferivelmente transferidas para a máquina) deveria ser reduzido ao mínimo. A dinâmica e a rotinização do processo de produção, a impessoalidade da relação entre trabalhador e máquina, a eliminação de todas as dimensões do papel produtivo que não as tarefas fixas da produção, e a resultante homogeneidade das ações dos trabalhadores formavam o exato oposto do ambiente comunitário em que se inscrevia o trabalho pré-industrial. O chão da fábrica deveria ser o equivalente, comandado pela máquina, da burocracia que, segundo o modelo ideal esboçado por Max Weber, tinha como objetivo a irrelevância total dos laços e compromissos sociais estabelecidos e mantidos fora do escritório e do horário de trabalho. Os resultados do trabalho não deveriam ser afetados por fatores tão pouco confiáveis e flutuantes como o “instinto de obra bem-feita” com sua fome de honra, mérito e dignidade e, acima de tudo, sua aversão à futilidade.

A segunda tendência corria paralela à primeira, tendo começado cedo nas “cidades modelo” de alguns filantropos que associavam o sucesso industrial a um fator de “sentir-se bem” entre os trabalhadores. Em lugar de confiar exclusivamente nos poderes coercitivos da máquina, apostavam nos padrões morais dos trabalhadores, sua piedade religiosa, na generosidade de sua vida familiar e sua confiança no chefe-patrão. As cidades modelo construídas em torno das fábricas estavam equipadas com moradias decentes, mas também com capelas, escolas primárias, hospitais e confortos sociais básicos — todos projetados pelos donos das fábricas junto com o resto do complexo de produção. A aposta era na recriação da comunidade em torno do lugar de trabalho e, assim, na transformação do emprego na fábrica numa tarefa para “toda a vida”.
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... sobre o precariado (nós todos, exceto se algum bilionário está a ler...)

"Como Pierre Bourdieu não se cansou de observar, o estado de permanente précarité — insegurança quanto à posição social, incerteza sobre o futuro da sobrevivência e a opressiva sensação de “não segurar o presente”— gera uma incapacidade de fazer planos e segui-los. Quando a ameaça da mudança unilateral ou do fim dos arranjos correntes por parte daqueles que decidem o meio em que os afazeres da vida devem ser realizados paira perpetuamente sobre as cabeças daqueles que os realizam, as chances de resistência aos movimentos dos detentores do poder, e particularmente de resistência firme, organizada e solidária, são mínimas — virtualmente inexistentes. Os detentores do poder não têm o que temer e assim não sentem necessidade das custosas e complicadas “fábricas de
obediência” ao estilo panóptico. Em meio à incerteza e à insegurança, a disciplina (ou antes a submissão à condição de que “não há alternativa”) anda e se reproduz por conta própria e não precisa de capatazes para supervisionar seu abastecimento constantemente atualizado...

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De longe a mais dura das gaiolas de ferro em que a vida média costumava ser inscrita era o quadro social em que se ganhava o sustento: o escritório ou a planta industrial, os trabalhos ali realizados, as habilidades necessárias para realizá-los e a rotina diária. Solidamente encapsulado nessa moldura, o trabalho podia razoavelmente ser visto como uma vocação ou a missão de uma vida: como o eixo em torno do qual o resto da vida se revolvia e ao longo do qual se registravam as realizações. Agora, esse eixo está irreparavelmente quebrado. Em lugar de ter ficado “flexível”, como os porta-vozes do admirável mundo novo gostariam que fosse percebido, ele se tornou frágil e quebradiço. Nada pode (ou deveria) ser fixado a esse eixo com segurança — confiar em sua durabilidade seria ingênuo e poderia ser fatal. Até os escritórios mais veneráveis e as fábricas mais orgulhosas de seu longo e glorioso passado tendem a desaparecer da noite para o dia e sem aviso; empregos tidos como permanentes e indispensáveis, do tipo “impossível passar sem eles”, se evaporam antes que o trabalho esteja terminado, habilidades outrora febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e deixam de ser vendáveis muito antes da data prevista de expiração; e rotinas de trabalho são viradas de cabeça para baixo antes de serem aprendidas. A “porção de comida” no suposto fim do caminho se desloca ou apodrece mais rápido e antes que mesmo o mais inteligente dos ratos tenha aprendido como chegar até ela...

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O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação ao futuro que assombram os homens e mulheres no ambiente fluido e em perpétua transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os separa. As dores que causam aos indivíduos não se somam, não se acumulam nem condensam numa espécie de “causa comum” que possa ser adotada de maneira mais eficaz unindo as forças e agindo em uníssono. A decadência da comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que foi rompido. A sina de indivíduos que lutam em solidão pode ser dolorosa e pouco atraente, mas firmes compromissos a atuar em conjunto parecem prometer mais perdas do que ganhos..."

...dos filhos dos babyboomers e o discurso arrotado do self made man...

"Na verdade, os filhos dos militantes (do trabalho) obtiveram suas promoções individuais graças ao seguro comunitário contra azares individuais que os pais construíram para eles. Mas não gostam de ser lembrados de como foi que ficaram auto-suficientes; não vêem razão por que os outros não sejam como eles, desde que se comportem como eles. Reconstroem seu próprio desagrado com a  dependência” de que não mais precisam como uma condenação moral universal da dependência de que os menos afortunados precisam como do ar que respiram e que não podem dispensar." 

...da nossa democracia fake (não é diferente daqui)...

"Sob os presidentes Carter e Clinton, o Partido Democrata sobreviveu afastando-se dos sindicatos e de qualquer menção à redistribuição, movendo-se para um vácuo estéril chamado de “centro”... Foi como se a distribuição da renda e da riqueza tivesse virado um tópico assustador demais para ser mencionado por qualquer político norte-americano... E assim a escolha entre os dois partidos principais acabou como uma escolha entre mentiras cínicas e um silêncio temeroso..."

...da secessão dos "bem sucedidos"...

"Hoje, porém, o “cool” se transformou na visão do mundo dos importantes, inteiramente conservadores em suas ações e nas preferências que essas ações exemplificam, quando não em seu auto-elogio explícito (e enganador). Essa ordem cada vez mais conservadora se funda nos impressionantes poderes do mercado de consumo e do que resta das instituições políticas outrora autônomas. O “cool”, sugerem Pountain e Robins, “parece estar usurpando o lugar da ética do trabalho para instalar-se como forma mental dominante do capitalismo de consumo avançado”. 

“Cool” significa “fuga ao sentimento”, fuga “da confusão da verdadeira intimidade, para o mundo do sexo fácil, do divórcio casual, de relações não possessivas. 

Dada a completa perda da fé em alternativas políticas radicais, o  cool diz hoje respeito  principalmente ao consumo. Esse é o “cimento” que preenche a contradição escancarada — cool é a maneira de viver com as expectativas rebaixadas, indo às compras... O gosto pessoal é elevado a um 
ethos completo; você é aquilo de que gosta e, portanto, aquilo que você compra."

...e sua instalação na cidades com a ausência de comunhão...

"O mesmo pode ser dito dos bem-sucedidos em secessão dos dias de hoje. As “comunidades cercadas” pesadamente guardadas e eletronicamente controladas que eles compram no momento em que têm dinheiro ou crédito suficiente para manter distância da “confusa intimidade” da vida comum da cidade são “comunidades” só no nome. O que seus moradores estão dispostos a comprar ao preço de um braço ou uma perna é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos.
“Intrusos” são todas as outras pessoas, culpadas de ter suas próprias agendas e viver suas vidas do modo como querem. A proximidade de outras agendas e de modos de vida alternativos solapa o conforto de “acabar rapidamente e começar do começo”, e por isso os “intrusos” são objetos de ressentimento porque visíveis e embaraçosos...
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O mundo habitado pela nova elite não é porém definido por seu “endereço permanente” (no antigo sentido físico e topográfico). Seu mundo não tem outro “endereço permanente” que não o e-mail e o
número do telefone celular. A nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade e plenamente extraterritorial. 

Só a extraterritorialidade é garantida contra a comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela companhia inevitável (e às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras e garçons, é sua única detentora e quer que assim seja...
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Ser extraterritorial não significa, no entanto, ser portador de uma nova síntese cultural global, ou mesmo estabelecer laços e canais de comunicação entre áreas e tradições culturais. Há uma interface muito estreita, se houver alguma, entre o “território da extraterritorialidade” e as terras em que seus vários postos avançados e hospedarias intermediárias por acaso se situam. Como observam os pesquisadores da Virgínia, os executivos globais que entrevistaram...
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Quando no exterior, a maioria dos entrevistados tende a interagir e socializar com outros “globalizados”... Onde quer que vão, os hotéis, restaurantes, academias de ginástica, escritórios e aeroportos são virtualmente idênticos. Num certo sentido habitam uma bolha sociocultural isolada das diferenças mais ásperas entre diferentes culturas nacionais... São certamente cosmopolitas, mas de maneira limitada e isolada...
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Acima de tudo, a “bolha” em que a elite cosmopolita global dos negócios e da indústria cultural passa a maior parte de sua vida é — repito — uma zona livre de comunidade. 
É um lugar onde uma reunião,entendida como mesmice (ou mais precisamente,  uma insignificância de idiossincrasias) de indivíduos encontrados por acaso e “ necessariamente irrelevantes”, e uma individualidade, entendida como a facilidade não- problemática com que as parcerias são celebradas e abandonadas, são exercidas dia a dia em lugar de todas as outras práticas socialmente compartilhadas. A “secessão dos bem-sucedidos” é, antes e acima de tudo, uma fuga da comunidade...
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Os poderosos e bem-sucedidos” não podem dispensar com facilidade a visão meritocrática do mundo sem afetar seriamente o fundamento social do privilégio que prezam e do qual não têm intenção de abrir mão. E enquanto essa visão de mundo for mantida e considerada o cânone da virtude pública, o princípio comunitário do compartilhamento não pode ser aceito. A avareza que resulta numa relutância a pôr a mão no bolso não é talvez a única razão, talvez nem mesmo a principal, dessa não-aceitação. Há coisas mais importantes que o mero desapreço pelo auto-sacrifício: o princípio mesmo que fundamenta uma ambicionada distinção social é que está em jogo. Se qualquer coisa além do mérito imputado fosse reconhecida como título legítimo às recompensas oferecidas, aquele princípio perderia sua maravilhosa capacidade de conferir dignidade ao privilégio. Para os poderosos e bem-sucedidos” o desejo de “dignidade, mérito e honra” paradoxalmente exige a negação da comunidade.

Por mais verdade que isso seja, não é toda a verdade. Os “poderosos e bem-sucedidos” podem ressentir-se, ao contrário dos fracos e derrotados, dos laços comunitários — mas da mesma forma que os demais homens e mulheres podem achar que a vida vivida sem comunidade é precária, amiúde insatisfatória e algumas vezes assustadora. Liberdade e comunidade podem chocar-se e entrar em conflito, mas uma composição a que faltem uma ou outra não leva a uma vida satisfatória.

A necessidade dos dois ingredientes é sentida de maneira ainda mais forte porque a vida, em nossa sociedade globalizada e rapidamente desregulada que gerou a nova elite cosmopolita, mas que foi definida, na célebre expressão de Ulrich Beck, como Risikogessellschaft, sociedade do risco, é uma Risikoleben, uma vida de risco... 
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A nova elite, com carros próprios em quantidade suficiente para não se preocupar com o estado lamentável do transporte público, de fato destruiu as pontes que seus pais tinham atravessado à medida que as deixava para trás, esquecendo que essas pontes eram construídas e usadas socialmente — e que, se assim não fosse, ela mesma não teria chegado aonde chegou. Em termos práticos, a nova elite global lavou as mãos em relação à questão do “transporte público”. A “redistribuição” está definitivamente excluída, lançada à lata de lixo da história, junto com outros lamentáveis erros de julgamento que são hoje retrospectivamente responsabilizados pela opressão da autonomia individual e portanto também pelo estreitamento daquele “espaço” de que todos, como gostamos de repetir, “precisamos cada vez em maior quantidade”. E portanto também está eliminada a comunidade, entendida como um lugar de compartilhamento do bem-estar conjuntamente conseguido; como uma espécie de união que supõe a responsabilidade dos ricos e dá substância às esperanças dos pobres de que essa responsabilidade será assumida."

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