quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O verdadeiro médico e o juramento de Hipócrates

Quando o que importa são as pessoas e não os consultórios na Faria Lima...

Por Marcos Pacheco, médico sanitarista, secretário de Estado de Políticas Públicas, bacharel em direito, mestre e doutor em Políticas Públicas e professor universitário.
A decisão de retirada dos colegas médicos cubanos da Atenção Primária em Saúde vai agravar mais ainda a já recorrente tendência de elevação das taxas de morbimortalidade infantil no Brasil. Para se ter uma ideia do que isso representa, sairão de cena mais de oito mil médicos, todos (sem exceção) atuando em comunidades rurais, ribeirinhas, quilombolas, aldeias indígenas e bairros periféricos de grandes cidades brasileiras, em cenários de alta vulnerabilidade sociossanitária.
Mas, quem são esses médicos cubanos e por que farão tanta falta?
Na condição de secretário de Estado de Políticas Públicas, por dever de ofício, participei em 2016 de uma das muitas acolhidas que fizemos aos colegas cubanos que chegaram ao Maranhão para trabalhar na nossa interlândia. A sessão de acolhimento foi realizada na Unidade Básica de Saúde do bairro Vicente Fialho, em São Luís, onde, inclusive, trabalho como médico desde 2005. Eram uns 20 colegas médicos (todos cubanos). Sentamos em círculo, sob a frondosa mangueira que sombreia a unidade e começamos uma roda de conversa.
Cada um foi falando de suas expectativas aqui no Maranhão. Identifiquei-me logo com os que iriam para a região de Barra do Corda, Arame, Itaipava, Jenipapo dos Vieiras e Fernando Falcão, todos municípios que eu conhecia muito bem; trabalhei naquela região por mais de 15 anos. Fomos trocando algumas ideias, falei-lhes da presença indígena, das etnias Tenetehara (Guajajaras) e Ramkakromeká (Canelas), que ali têm seus territórios. Meus colegas cubanos mostravam-se (estranhamente) motivados. Via-se em suas faces uma disposição pelo desafio de fazer medicina na ponta, no campo, medicina capilarizada, medicina social, medicina da atenção primária.
Enquanto conversávamos, eu perguntava-me o que levaria médicos a deixar seu país e virem trabalhar em comunidades pobres ou entre indígenas. Lugares remotos, onde normalmente só Deus e o povo estão. Que espírito missionário é esse que acorre a médicos vindo de um regime comunista, portanto, ateu. Que vocação desvairada é essa? Somente aos poucos eu fui entendendo que se tratava de um tipo específico de formação médica. São formados para servir. São preparados para fazer ‘medicina de ponta’, exercer a clínica do cuidado onde a medicina é mais necessária, onde estão os mais necessitados.
Lembrei-me da visita que fizera no ano anterior à Havana, em 2015, na companhia do então ministro da saúde, Arthur Chioro. De fato, na Escola Latino Americana de Medicina (ELAM), em Cuba, o que vemos são jovens estudantes sem nenhuma marca de aristocratização. Muitos estrangeiros, egressos de famílias simples e humildes de seus países de origem, dos vários países de toda a América Latina, muitos do Brasil; jovens egressos daqui, da escola pública, impedidos de acessar uma das concorridíssimas vagas nas faculdades de medicina do Brasil, onde disputam com jovens egressos de escolas privadas, numa concorrência francamente desigual e injusta.
E foi um desses cubanos que encontrei na zona rural de Primeira Cruz, sentado na calçada de um Posto de Saúde, no final do expediente, já sem pacientes para atender, mas, como se ainda quisesse ficar mais um pouco ali naquela “igrejinha” de sua missão. Após os cumprimentos, perguntei-lhe como estava a situação de saúde ali naquele povoado de mais de mil famílias, onde só se conseguia chegar de barco. Ele sorridentemente foi dizendo “tudo bien”. E completou: “acompanho todas as gestantes, conheço todos os meninos de até cinco anos, vejo regularmente todos os hipertensos e diabéticos daqui e estamos tratando os poucos casos de hanseníase e tuberculose que identificamos”. Perguntei-lhe sobre casos graves, ele disse: “Meu trabalho é não deixar agravar”.
Agradeci-lhe pela disponibilidade e tive, com aquele cubano, uma lição da mais pura medicina efetiva, de baixíssimo custo e de altíssima resolutividade. Lembrei da nossa Força Estadual de Saúde do Maranhão (Fesma), programa do Governo do Maranhão que busca fazer esse tipo de assistência, focada em grupos prioritários a partir de parâmetros epidemiológicos, mas fundamentada em uma consciência social crítica e em uma competência clínica solidificada. Sem aristocratização, mas, sim, com muita dedicação e opção preferencial pelos socialmente mais vulneráveis.
Para atuar nas condições de saúde em que vive uma expressiva parte da população brasileira, camponeses, ribeirinhos, indígenas, quilombolas e moradores de bairros mais periféricos nas nossas grandes metrópoles, não basta ser médico, precisa ser um vocacionado. Saber lidar e reverter condições adversas, onde pobreza extrema se mescla com uma diversidade sociocultural muito extensa. Por isso não podem ficar desassistidos, não podemos deixá-los à mercê de sua própria sorte. Espero que tenhamos aprendido um pouco dessa lição que emerge da missionária vocação de ser médico sob qualquer condição. De fato, vamos precisar de todo mundo para varrer do mundo a opressão.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Vai viajar para o exterior?

Se for viajar para o exterior diga que é moçambicano pra não passar vergonha...


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Cordial... leia-se, fascista, violento e moralista

Passada a tempestade... vem a fome, a peste, a humilhação e a indigência



Só pra confirmar, o brasileiro médio mostrou sua cara.

Então, vamos ler e refletir um pouco.
Dois anos atrás, uma carta aberta ao brasileiro por um gringo que viveu aqui: 

Querido Brasil,

O Carnaval acabou. O “ano novo” finalmente vai começar e eu estou te deixando para voltar para o meu país.

Assim como vários outros gringos, eu também vim para cá pela primeira vez em busca de festas, lindas praias e garotas. O que eu não poderia imaginar é que eu passaria a maior parte dos 4 últimos anos dentro das suas fronteiras. Aprenderia muito sobre a sua cultura, sua língua, seus costumes e que, no final deste ano, eu me casaria com uma de suas garotas.

Não é segredo para ninguém que você está passando por alguns problemas. Existe uma crise política, econômica, problemas constantes em relação à segurança, uma enorme desigualdade social e agora, com uma possível epidemia do Zika vírus, uma crise ainda maior na saúde.

Durante esse tempo em que estive aqui, eu conheci muitos brasileiros que me perguntavam: “Por que? Por que o Brasil é tão ferrado? Por que os países na Europa e América do Norte são prósperos e seguros enquanto o Brasil continua nesses altos e baixos entre crises década sim, década não?”

No passado, eu tinha muitas teorias sobre o sistema de governo, sobre o colonialismo, políticas econômicas, etc. Mas recentemente eu cheguei a uma conclusão. Muita gente provavelmente vai achar essa minha conclusão meio ofensiva, mas depois de trocar várias ideias com alguns dos meus amigos, eles me encorajaram a dividir o que eu acho com todos os outros brasileiros.

Então aí vai: é você.
Você é o problema.

Sim, você mesmo que está lendo esse texto. Você é parte do problema. Eu tenho certeza de não é proposital, mas você não só é parte, como está perpetuando o problema todos os dias.
Não é só culpa da Dilma ou do PT. Não é só culpa dos bancos, da iniciativa privada, do escândalo da Petrobras, do aumento do dólar ou da desvalorização do Real.
O problema é a cultura. São as crenças e a mentalidade que fazem parte da fundação do país e são responsáveis pela forma com que os brasileiros escolhem viver as suas vidas e construir uma sociedade.

O problema é tudo aquilo que você e todo mundo a sua volta decidiu aceitar como parte de “ser brasileiro” mesmo que isso não esteja certo.
Quer um exemplo?
Imagine que você está de carona no carro de um amigo tarde da noite. Vocês passam por uma rua escura e totalmente vazia. O papo está bom e ele não está prestando muita atenção quando, de repente, ele arranca o retrovisor de um carro super caro. Antes que alguém veja, ele acelera e vai embora.

No dia seguinte, você ouve um colega de trabalho que você mal conhece dizendo que deixou o carro estacionado na rua na noite anterior e ele amanheceu sem o retrovisor. Pela descrição, você descobre que é o mesmo carro que seu brother bateu “sem querer”. O que você faz?

A) Fica quieto e finge que não sabe de nada para proteger seu amigo? Ou
B) Diz para o cara que sente muito e força o seu amigo a assumir a responsabilidade pelo erro?


Eu acredito que a maioria dos brasileiros escolheria a alternativa A. Eu também acredito que a maioria dos gringos escolheria a alternativa B.
Nos países mais desenvolvidos o senso de justiça e responsabilidade é mais importante do que qualquer indivíduo. Há uma consciência social onde o todo é mais importante do que o bem-estar de um só. E por ser um dos principais pilares de uma sociedade que funciona, ignorar isso é uma forma de egoísmo.

Eu percebo que vocês brasileiros são solidários, se sacrificam e fazem de tudo por suas famílias e amigos mais próximos e, por isso, não se consideram egoístas.
Mas, infelizmente, eu também acredito que grande parte dos brasileiros seja extremamente egoísta, já que priorizar a família e os amigos mais próximos em detrimento de outros membros da sociedade é uma forma de egoísmo.

Sabe todos aqueles políticos, empresários, policiais e sindicalistas corruptos? Você já parou para pensar por que eles são corruptos? Eu garanto que quase todos eles justificam suas mentiras e falcatruas dizendo: “Eu faço isso pela minha família”. Eles querem dar uma vida melhor para seus parentes, querem que seus filhos estudem em escolas melhores e querem viver com mais segurança.
É curioso ver que quando um brasileiro prejudica outro cidadão para beneficiar sua famílias, ele se acha altruísta. Ele não percebe que altruísmo é abrir mão dos próprios interesses para beneficiar um estranho se for para o bem da sociedade como um todo.

Além disso, seu povo também é muito vaidoso, Brasil. Eu fiquei surpreso quando descobri que dizer que alguém é vaidoso por aqui não é considerado um insulto como é nos Estados Unidos. Esta é uma outra característica particular da sua cultura.
Algumas semanas atrás, eu e minha noiva viajamos para um famoso vilarejo no nordeste. Chegando lá, as praias não eram bonitas como imaginávamos e ainda estavam sujas. Um dos pontos turísticos mais famosos era uma pedra que de perto não tinha nada demais. Foi decepcionante.
Quando contamos para as pessoas sobre a nossa percepção, algumas delas imediatamente disseram: “Ah, pelo menos você pode ver e tirar algumas fotos nos pontos turísticos, né?”

Parece uma frase inocente, mas ela ilustra bem essa questão da vaidade: as pessoas por aqui estão muito mais preocupadas com as aparências do que com quem eles realmente são.
É claro que aqui não é o único lugar no mundo onde isso acontece, mas é muito mais comum do que em qualquer outro país onde eu já estive.

Isso explica porque os brasileiros ricos não se importam em pagar três vezes mais por uma roupa de grife ou uma jóia do que deveriam, ou contratam empregadas e babás para fazerem um trabalho que poderia ser feito por eles. É uma forma de se sentirem especiais e parecerem mais ricos. Também é por isso que brasileiros pagam tudo parcelado. Porque eles querem sentir e mostrar que eles podem ter aquela super TV mesmo quando, na realidade, eles não tenham dinheiro para pagar. No fim das contas, esse é o motivo pelo qual um brasileiro que nasceu pobre e sem oportunidades está disposto a matar por causa de uma motocicleta ou sequestrar alguém por algumas centenas de Reais. Eles também querem parecer bem sucedidos, mesmo que não contribuam com a sociedade para merecer isso.

Muitos gringos acham os brasileiros preguiçosos. Eu não concordo. Pelo contrário, os brasileiros tem mais energia do que muita gente em outros lugares do mundo (vide: Carnaval).
O problema é que muitos focam grande parte da sua energia em vaidade em vez de produtividade. A sensação que se tem é que é mais importante parecer popular ou glamouroso do que fazer algo relevante que traga isso como consequência. É mais importante parecer bem sucedido do que ser bem sucedido de fato.

Vaidade não traz felicidade. Vaidade é uma versão “photoshopada” da felicidade. Parece legal vista de fora, mas não é real e definitivamente não dura muito.
Se você precisa pagar por algo muito mais caro do que deveria custar para se sentir especial, então você não é especial. Se você precisa da aprovação de outras pessoas para se sentir importante, então você não é importante. Se você precisa mentir, puxar o tapete ou trair alguém para se sentir bem sucedido, então você não é bem sucedido. Pode acreditar, os atalhos não funcionam aqui.

E sabe o que é pior? Essa vaidade faz com que seu povo evite bater de frente com os outros. Todo mundo quer ser legal com todo mundo e acaba ou ferrando o outro pelas costas, ou indiretamente só para não gerar confronto.

Por aqui, se alguém está 1h atrasado, todo mundo fica esperando essa pessoa chegar para sair. Se alguém decide ir embora e não esperar, é visto como cuzão. Se alguém na família é irresponsável e fica cheio de dívidas, é meio que esperado que outros membros da família com mais dinheiro ajudem a pessoa a se recuperar. Se alguém num grupo de amigos não quer fazer uma coisa específica, é esperado que todo mundo mude os planos para não deixar esse amigo chateado. Se em uma viagem em grupo alguém decide fazer algo sozinho, este é considerado egoísta.

É sempre mais fácil não confrontar e ser boa praça. Só que onde não existe confronto, não existe progresso.
Como um gringo que geralmente não liga a mínima sobre o que as pessoas pensam de mim, eu acho muito difícil não enxergar tudo isso como uma forma de desrespeito e auto-sabotagem. Em diversas circunstâncias eu acabo assistindo os brasileiros recompensarem as “vítimas” e punirem àqueles que são independentes e bem resolvidos.

Por um lado, quando você recompensa uma pessoa que falhou ou está fazendo algo errado, você está dando a ela um incentivo para nunca precisar melhorar. Na verdade, você faz com que ela fique sempre contando com a boa vontade de alguém em vez de ensina-la a ser responsável.
Por outro lado, quando você pune alguém por ser bem resolvido, você desencoraja pessoas talentosas que poderiam criar o progresso e a inovação que esse país tanto precisa. Você impede que o país saia dessa merda que está e cria ainda mais espaço para líderes medíocres e manipuladores se prolongarem no poder.

E assim, você cria uma sociedade que acredita que o único jeito de se dar bem é traindo, mentindo, sendo corrupto, ou nos piores casos, tirando a vida do outro.
As vezes, a melhor coisa que você pode fazer por um amigo que está sempre atrasado é ir embora sem ele. Isso vai fazer com que ele aprenda a gerenciar o próprio tempo e respeitar o tempo dos outros.

Outras vezes, a melhor coisa que você pode fazer com alguém que gastou mais do que devia e se enfiou em dívidas é deixar que ele fique desesperado por um tempo. Esse é o único jeito que fará com que ele aprenda a ser mais responsável com dinheiro no futuro.

Eu não quero parecer o gringo que sabe tudo, até porque eu não sei. E deus bem sabe o quanto o meu país também está na merda (eu já escrevi aqui sobre o que eu acho dos EUA).
Só que em breve, Brasil, você será parte da minha vida para sempre. Você será parte da minha família. Você será meu amigo. Você será metade do meu filho quando eu tiver um.
E é por isso que eu sinto que preciso dividir isso com você de forma aberta, honesta, com o amor que só um amigo pode falar francamente com outro, mesmo quando sabemos que o que temos a dizer vai doer.

E também porque eu tenho uma má notícia: não vai melhorar tão cedo.
Talvez você já saiba disso, mas se não sabe, eu vou ser aquele que vai te dizer: as coisas não vão melhorar nessa década.
O seu governo não vai conseguir pagar todas as dívidas que ele fez a não ser que mude toda a sua constituição. Os grandes negócios do país pegaram dinheiro demais emprestado quando o dólar estava baixo, lá em 2008-2010 e agora não vão conseguir pagar já que as dívidas dobraram de tamanho. Muitos vão falir por causa disso nos próximos anos e isso vai piorar a crise.
O preço das commodities estão extremamente baixos e não apresentam nenhum sinal de aumento num futuro próximo, isso significa menos dinheiro entrando no país. Sua população não é do tipo que poupa e sim, que se endivida. As taxas de desemprego estão aumentando, assim como os impostos que estrangulam a produtividade da classe trabalhadora.

Você está ferrado. Você pode tirar a Dilma de lá, ou todo o PT. Pode (e deveria) refazer a constituição, mas não vai adiantar. Os erros já foram cometidos anos atrás e agora você vai ter que viver com isso por um tempo.
Se prepare para, no mínimo, 5-10 anos de oportunidades perdidas. Se você é um jovem brasileiro, muito do que você cresceu esperando que fosse conquistar, não vai mais estar disponível. Se você é um adulto nos seus 30 ou 40, os melhores anos da economia já fazem parte do seu passado. Se você tem mais de 50, bem, você já viu esse filme antes, não viu?

É a mesma velha história, só muda a década. A democracia não resolveu o problema. Uma moeda forte não resolveu o problema. Tirar milhares de pessoas da pobreza não resolveu o problema. O problema persiste. E persiste porque ele está na mentalidade das pessoas.
O “jeitinho brasileiro” precisa morrer. Essa vaidade, essa mania de dizer que o Brasil sempre foi assim e não tem mais jeito também precisa morrer. E a única forma de acabar com tudo isso é se cada brasileiro decidir matar isso dentro de si mesmo.

Ao contrário de outras revoluções externas que fazem parte da sua história, essa revolução precisa ser interna. Ela precisa ser resultado de uma vontade que invade o seu coração e sua alma.
Você precisa escolher ver as coisas de um jeito novo. Você precisa definir novos padrões e expectativas para você e para os outros. Você precisa exigir que seu tempo seja respeitado. Você deve esperar das pessoas que te cercam que elas sejam responsabilizadas pelas suas ações. Você precisa priorizar uma sociedade forte e segura acima de todo e qualquer interesse pessoal ou da sua família e amigos. Você precisa deixar que cada um lide com os seus próprios problemas, assim como você não deve esperar que ninguém seja obrigado a lidar com os seus.

Essas são escolhas que precisam ser feitas diariamente. Até que essa revolução interna aconteça, eu temo que seu destino seja repetir os mesmos erros por muitas outras gerações que estão por vir.
Você tem uma alegria que é rara e especial, Brasil. Foi isso que me atraiu em você muitos anos atrás e que me faz sempre voltar. Eu só espero que um dia essa alegria tenha a sociedade que merece.

Seu amigo,
Mark


Traduzido por Fernanda Neute

Original aqui: https://markmanson.net/brazil_pt

A partir da vergonha sublime de ser brasileiro, talvez reste outra leitura: "A sublime arte de ligar o foda-se" de Mark Manson. Baixe aqu!




segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Época esclarecedora

Não voto há um bom tempo.
Não é nenhuma forma de protesto, apenas não acredito que vivemos numa democracia (vivemos a ditadura do 'M'ercado, onde os candidatos devem ser aprovados por 'E'le e tê-'L'o como sua discussão principal) e, principalmente, que votar é talvez a menor das características das democracias participativas.

Lembremos que a democracia grega, a nossa fonte de inspiração, era altamente classista com relação a quem participava das decisões.

Mas a questão principal aqui é que nessa eleição finalmente paramos com a hipocrisia.
O 'brasileiro cordial' (quem acha que isso é um elogio deveria urgentemente ler Sérgio Buarque de Holanda) finalmente se decide aberta e descaradamente pelo sexista, truculento, preconceituoso, homofóbico, moralista... claro, poderia dizer que tudo decorrente da completa ignorância, mas entre Rousseau e Hobbes, já que nascemos todos amorais, fico com o último, pois afinal é aonde estamos agora, então parece que a ignorância não basta mais como perdão.



Em outras eleições (nesta também) havia certas 'nuances', 'disfarces' e desculpas (não que agora não exista o PT como boa desculpa para se optar pelo mal, no sentido mais clássico) para se votar nesse ou naquele, mas agora foi tudo bastante descarado.

 O "bons homens de pulso" que através da história sempre vem "contra tudo isso que está aí".

O Brasil vira um "experimento de Milgram" em grande escala, sem nenhuma sofisticação de Hannah Arendt na "Banalidade do mal". 

O grande eleitorado deixa de lado a hipocrisia tradicional e parte para reconhecer a si mesmo.

É o seu "bom" vizinho que lhe cumprimenta diariamente, seu "bom" amigo que te paga uma cerveja, seu "bom" primão que sempre te visita, etc, etc.

O mal é o sinistro elemento disfarçado do "bom elemento"; é a certeza ante à dúvida; é o "pulso" ante o diálogo; é a "boa energia" ou a "vibe" ecoando a antiga "boa aparência"; é o moralismo se passando por moral... enfim, agora ficou mais tranquilo em simplesmente não querer mais me relacionar com pessoas que, por questões de história afetiva, ainda mantinha algum vínculo mas tinha sérias preocupações a cerca da sua humanidade.

Sim, humanidade.
Não resta mais nada de defensável em boa parte dos brasileiros (não que seja nossa exclusividade, mas são desses "irmãos" a que esse desabafo se refere).

Eles simplesmente optaram sem o véu ou desculpa da ignorância (no pior aspecto do ignorar) pelas piores faces da (não) humanidade.

Mas como eu disse, épocas sinistras e deprimentes vem para alguma transformação, ainda que seja uma calamidade histórica e vergonhosa ao menos agora tenho certeza de quem me cerca.




sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Ideologias de Carbono

Viver muito?
Se reproduzir?
Pra quem cara pálida?
Além do narcisismo me parece sadismo...


Reproduzindo:

Os escritores gostam de se autoelogiar imaginando para seu trabalho um “leitor ideal”, uma presença querubina dotada de generosidade infinita, da simpatia de um pai e da sabedoria, bem, dos próprios autores. Em Carbon Ideologies (Ideologias de Carbono), William T. Vollmann imagina para si mesmo o oposto: um leitor barbaramente hostil que zomba de seus argumentos, ridiculariza sua debilidade mental, desdenha suas patéticas tentativas até a ingratidão. Vollmann não pode culpar esse leitor, a quem se dirige regularmente no decorrer de Ideologias de Carbono, porque ela vive no futuro, sob circunstâncias radicalmente diferentes – habitando “um planeta mais quente, mais perigoso e diminuído biologicamente”. Ele a imagina virando as páginas de sua obra sobre mudanças climáticas dentro dos escuros recessos de uma caverna subterrânea onde procurou abrigo do calor insuportável; pragas, secas e inundações; bolas de fogo de metano atravessando oceanos ferventes. Como o solo é radioativo, ela sobrevive de insetos e de urina reciclada, e olha com desprezo implacável seus ancestrais, que, como o autor lhe diz, “desfrutamos do mundo que possuíamos e merecemos o mundo que deixamos”.

Ideologias de Carbono é um trabalho único publicado em duas partes, No Immediate Danger (Nenhum Perigo Imediato) e No Good Alternative (Nenhuma Alternativa Boa). A bifurcação deve-se à insistência do exausto editor de Vollmann e aos limites da moderna encadernação. De todos os escritores em atividade hoje, Volmann deve ser o mais livre: ele escreve ficção, ensaios, monografias, críticas, memórias e história, geralmente misturando várias formas de uma só vez, sobre temas tão diversos quanto teatro Nô japonês, passeios de trem, e a guerra de Nez Perce, dilatando-os até a extensão que lhe convier.
Como acontece frequentemente com Vollmann, décadas de atrito com seus editores respingam nas páginas do livro. Ideologias de Carbonocomeça com a confissão de que o manuscrito original era “várias vezes mais longo do que o máximo estipulado por contrato”; depois de “ansiosas negociações”, seu editor “finalmente concordou em satisfazer-me mais uma vez”. Não seu editor de não-ficção – do qual ele se afastou depois de receber uma proposta de adiantamento inferior à quantia que já gastara em pesquisa –, mas seu editor de ficção. (“Espero sinceramente que algum dia tudo isso valha a pena para você”, escreve ele em amoroso reconhecimento.) A editora Viking manteve a linha até as notas finais, que chegam a 129 mil palavras e podem ser examinadas online ou no arquivo de Vollmann na Ohio State University.
As 1.268 páginas que restam são tão gloriosa e loucamente inclassificáveis quanto a maioria do trabalho de Vollmann. A analogia mais próxima é Rising Up and Rising Down, seu tratado de 3300 páginas sobre violência, com sete volumes, que Vollmann chama de texto de companhia. Ideologias de Carbono é sobre outro tipo de violência, a violência infligida pela produção de carvão, gás natural, petróleo e energia nuclear. As vítimas dessas ideologias de carbono são não somente as espécies da fauna e da flora que serão extintas, os frágeis ecossistemas que serão destruídos, e as gerações futuras de humanos que terão de sobreviver de insetos. As vítimas somos nós – nós que estamos vivendo agora e que negamos, em vários níveis, o tamanho do dano que estamos causando a nós mesmos. Ideologias de carbono é uma crônica da automutilação.
É também um almanaque sobre o uso global de energia. O volume inicial abre com um manual cheio de tabelas, listas e dados (“garanto que você não perderá nada pulando à página 217”) e conclui com 80 páginas de definições, unidades e conversões (“Os leitores devem sentir-se livres para pular essa seção”). É um diário de viagem a paisagens naturais destruídas pela produção de energia, principalmente Fukushima (nuclear), West Virginia (carvão), Colorado (gás natural) e Emirados Árabes Unidos (petróleo). É um trabalho de história oral, que contém dezenas de entrevistas com operários que trabalham ou vivem ao lado de reatores nucleares, cavernas e refinarias de petróleo, juntos nos instantâneos do próprio Vollmann. E é um trabalho piedoso de antropologia, que tenta dar sentido à falta de capacidade do ser humano para pesar a catástrofe futura contra o conforto de curto prazo. Ideologias de Carbono é mais fascinante, contudo, pelo que não é: uma polêmica.
Praticamente todos os livros sobre mudanças climáticas que foram escritos para o público em geral contêm uma mensagem de esperança, e frequentemente uma chamada para a ação. Vollmann declara desde o início que não irá oferecer nenhuma solução, porque não acredita ser possível: “Nada pode ser feito para salvar [o mundo como o conhecemos]; portanto, nada precisa ser feito”. Isso faz de Ideologias de Carbono, com todos os seus méritos e falhas, um dos livros mais honestos já escritos sobre mudanças climáticas. O empreendimento de Vollmann está na vanguarda da segunda onda de literatura climática, livros escritos não para diagnosticar ou resolver o problema, mas para lidar com suas consequências morais.
É também um projeto profundamente idiossincrático: o idioleto de Vollmann é obsessivo, meticuloso, inquieto, hiperobservador e orgulhosamente amador. Os dados que ele apresenta são às vezes reveladores. Um sem-teto nos Estados Unidos usa duas vezes mais energia que o cidadão médio global; 61% da energia gerada nos EUA em 2012 “não realizaram nenhum trabalho útil”; de 1980 a 2011, o uso global de energia praticamente triplicou. Em outros lugares, os dados são impossivelmente arcanos (“Desperdício de Energia por Máquinas-Ferramentas”, em “Dedução de máquinas inativas”) ou desafiadoramente não-científicos (“Sinto muito por não conseguir tornar minha tabela simples, completa ou precisa”). Seu insaciável apetite por detalhes produz tanto trivialidades irrelevantes (“Embarcando no Super Limitado Hitachi Express, que também era conhecido como o Super Hitachi 23 Limited Express”) como retratos magistrais de paisagens profanadas por escavações e mais escavações — ou, no caso de Virgínia Ocidental, montanhas com cumes extirpados.
A seção sobre Fukushima é especialmente incomum em sua evocação de uma paisagem costeira vibrando com raios gama. Vollmann respira um vento fresco “cujo grau de contaminação particulada era, claro, desconhecida”, ouve numa rua silenciosa, à noite, o grunhido de um javali radioativo, e anda sobre cacos de vidro de uma loja de roupas abandonada, anunciando uma liquidação com 50% de desconto e povoada por manequins sem cabeça. Embora fissão nuclear não produza emissão de gases de efeito estufa, seus horrores passam a representar os das mudanças climáticas, um vasto terror invisível para os vitimados por ela – pelo menos a curto prazo. Embora Vollmann refira-se aos capítulos de Fukushima quando escreve que seu projeto é apoiado em “pouco mais que cegueira, desconforto, desamparo e ignorância”, ele está descrevendo todas as Ideologias de Carbono.
Essas qualidades atingem sua mais completa expressão nas declarações feitas por funcionários do governo ou das corporações contra alertas de ameaça ambiental. Em Fukushima, objetos na zona de precipitação não são radioativados, mas “contaminados”. Em Virginia Ocidental, as montanhas não têm seus cumes arrancados, mas garantem “remoção de sobrecarga”. A extração de petróleo por explosão de rochas (“Fracking”) “é mais segura e tem impacto ambiental menor do que dirigir um carro”, alega um diretor de marketing da Shale Crescent USA, e os mineiros de carvão, segundo o presidente da Associação de Carvão de Virginia Ocidental, “são os maiores ambientalistas práticos do mundo”. Vollmann registra essas insanidades ao lado de observações de personagens como Buda (“As pessoas são ignorantes e egoístas”), Edmund Spenser (“Pior é o perigo escondido que o descrito”), e Loren Eiseley (“Assim como os instintos podem falhar num animal submetido a mudança nas condições ambientais, as crenças culturais do homem podem ser inadequadas para enfrentar uma nova situação”). Vollmann anseia por provar que Buda, Spenser e Eiseley estão errados e submete questões-relâmpago a todos os executivos do setor que encontra; mas, fora do Japão, quase ninguém em posição de autoridade concorda em comentar.
A maioria das longas entrevistas que dominam Ideologias de Carbonosão, assim, realizadas com homens que trabalham em cavernas ou cavas para produzir a energia que desperdiçamos. Se “nada é mais medonho que ver a ignorância em ação” (Goethe), esses encontros são um pesadelo desperto. Trabalhadores de refinaria de petróleo no México, mineiros de carvão em Bangladesh, e operadores de fracking no Colorado estão unidos em sua grande apreensão pelos danos ambientais que seu trabalho causa, para não mencionar os fatos básicos das mudanças climáticas e suas ramificações. “A maioria de suas respostas foram calmas e brandas”, relata Vollmann, embora isso não o impeça de registrá-las longamente, quase textualmente. Às vezes suas perguntas provocam uma joia de lirismo acidental, como quando o trabalhador metalúrgico indiano de uma companhia petrolífera dos Emirados Árabes Unidos, diante da pergunta sobre sua opinião a respeito das mudanças climáticas, responde: “Agora um pouquinho bom; mas no futuro, muito perigo”. Melhor, impossível.
Vollmann não culpa o metalúrgico imigrante por sua complacência ou ignorância, é claro. Culpa a si mesmo – frequente e profusamente. Parece deliciar-se especialmente em quantificar, em cuidadosos detalhes, a energia que queima em atividades como escrever um rascunho de Ideologias de Carbono, dobrar a esquina de seu hotel em Tóquio para comprar uma bandeja de tonkatsu numa loja de conveniência e fazer um milkshake para sua filha. Essas passagens são tão instrutivas quanto tediosas. Elas dramatizam não só a obstinação de nossa dependência de combustíveis fósseis, mas a impossibilidade de compreender de verdade nossa própria culpa pelo destino do planeta. Com que frequência você para pra pensar sobre a quantidade de carvão queimado cada vez que pega um elevador, carrega seu telefone ou usa seu liquidificador? Mesmo atos extravagantes de autonegação são impotentes diante de consumo tão perdulário. Vollmann compara nossos mais ambiciosos esforços para conservar energia a alguém que faz dieta e continua comendo sua dose diária de doces e sorvetes … apesar do louvável fato de ter comido brócolis no almoço da quinta-feira passada.
A fome global por doces é mais voraz a cada ano que passa. Quaisquer que sejam as economias de bom samaritano que possamos fazer, melhorando a infraestrutura ou pedalando para o trabalho, elas serão superadas pela ampliação do sistema de consumo nas próximas décadas. Cerca de um terço da população humana cozinha suas refeições com biomassa – madeira, carvão, restos agrícolas e esterco animal. Quase um bilhão de pessoas não têm acesso à eletricidade. Não será preciso que toda a Índia adote “o modo de vida norte-americano” para provocar aumentos gigantescos nas emissões globais. A ascensão da Índia ao modo de vida da Namíbia será suficiente.
Os problema da demanda, do crescimento, da complexidade, do custo-benefício, da indústria; o problema político, o do atraso geracional, da negação – Vollmann cataloga escrupulosamente todos os principais problemas não resolvidos que contribuem para o colosso das mudanças climáticas. “Qualquer ‘solução’ que eu tivesse proposto em 2017”, escreve, “teria sido adiada até que os oceanos subissem mais dois centímetros!” (O título do capítulo final, “Um raio de esperança”, deve ser lido sarcasticamente). Nem os seis anos de viagens pelo mundo tabulando dados e entrevistando especialistas mudaram qualquer aspecto essencial do seu pensamento sobre o assunto. O leitor que começa a ler Ideologias de Carbono sem esperança irá terminá-lo sem esperança. Também o leitor esperançoso.
Mas há outros tipos de leitores – aqueles que não buscam conselhos ou encorajamento ou conforto. Aqueles que estão fartos de cruzadas de desonestidade baseadas em otimismo. Aqueles que procuram entender a natureza humana e a si mesmos. Porque o verdadeiro assunto de Vollmann é a natureza humana – e é o que deve ser. A história das mudanças climáticas depende do comportamento humano, não da geofísica. Vollmann procura entender como “pudemos não apenas sustentar, mas acelerar o aumento dos níveis de carbono atmosférico, ao mesmo tempo em que expressamos confusão, impotência e ressentimento”. Por que assumimos riscos tão insanos? Não poderíamos ter nos comportado de nenhum outro modo? Podemos nos comportar de algum outro modo? Se não podemos, a que conclusões podemos chegar sobre nossas vidas e nosso futuro? Vollmann admite que até mesmo ele esquivou-se completamente de compreender os danos que causamos. “Nunca me odiei suficientemente para permitir a punição do pleno entendimento”, escreve ele. “Como poderia? Ninguém poderia.” Ele está certo, embora livros como o Ideologias de Carbono nos aproximem disso.

A atmosfera do planeta mudará, mas não a natureza humana. O insuficiente desejo de Vollmann é que os leitores futuros compreendam que teriam cometido os mesmos erros que cometemos. Isso pode parecer uma humilde ambição para um projeto dessa amplitude, mas só se você toma Ideologias de Carbono, erroneamente, como um trabalho de ativismo. O projeto de Vollmann não é absolutamente tão convencional. Sua “carta ao futuro” é uma mensagem de suicídio. Ele não busca uma intervenção – apenas aceitação. Se não o perdão, pelo menos aceitação.

Por Nathaniel Rich | Tradução: Inês Castilho

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Física e filosofia

Pra que ama física como eu e reconhece sua raiz inseparável da filosofia (afinal, em alguns países ainda existe a disciplina da filosofia natural, que, aliás, Marcelo Gleiser é professor), uma bela obra.

A Filosofia da Física de Lawrence Sklar.

https://mega.nz/#!dTZSlC4b!O4PRsnH7_yXzNL_eVgXwfddd42cnHuS5EulqtYjDG1g




Não tenho nenhum ganho financeiro nem direto nem indireto
o que invalida a hipótese de pirataria, e no mais,  a divulgação livre
de conhecimento só é impedida por crápulas amorais e desprezíveis.

Pitaco retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992):

Filosofia da física e filosofia em geral

Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus
Pode ser útil explicar por que razão o estudo dos fundamentos das teorias físicas e dos seus aspectos filosóficos é útil para os filósofos que não estejam especialmente preocupados com a natureza da física. Gostaria de sugerir que os problemas investigados pelos filósofos da física e os métodos que usam para abordar esses problemas podem também trazer alguma luz às questões filosóficas mais gerais.

Os filósofos da ciência estão interessados em questões como a natureza das teorias científicas, saber como estas teorias explicam os fenômenos do mundo, quais são as suas bases empíricas e inferenciais, e como esses dados empíricos podem ser vistos como algo que apoia ou desencoraja a crença numa hipótese. Podemos ganhar em perspicácia ao abordar estes problemas mais gerais no contexto de teorias específicas da física contemporânea. O vasto alcance das teorias e a sua natureza altamente explícita proporcionam um contexto onde muitos problemas da filosofia da ciência geral, que de outro modo seriam bastante vagos, se tornam mais “fixos” quando concentramos a atenção nessas teorias físicas específicas.
Como essas teorias apresentam um elevado grau de formalização, o lugar nelas ocupado por conceitos cruciais encontra-se estabelecido de uma maneira simples e clara. Questões sobre o significado de conceitos cruciais, sobre a sua eliminabilidade ou irredutibilidade, sobre as suas relações definicionais, etc., ficam assim sujeitas a um exame rigoroso. É mais difícil conduzir esse exame em relação a conceitos mais “vagos” de ciências menos bem formalizadas. Como veremos também, a relação entre a estrutura teórica e os fatos observacionais a partir dos quais esta é inferida é particularmente clara em muitos casos da física formal. Nas teorias sobre o espaço e o tempo, por exemplo, o próprio contexto da teorização científica pressupõe noções bastante definidas sobre o que pode contar como “fatos acessíveis a uma inspeção observacional direta”, que deverão fornecer toda a base empírica da teoria. Deste modo, questões como a de saber se a totalidade desses fatos poderá selecionar apenas uma alternativa teórica viável, apoiando-a mais do que a todos os seus rivais, são tratadas de uma maneira esclarecedora, maneira essa que não é possível no contexto geral da ciência. Neste último contexto, não existe uma noção clara dos limites da observabilidade nem uma delimitação clara da classe das alternativas teóricas possíveis a ter em consideração. Se explorarmos, no contexto das teorias fundamentais da física, problemas como o da eliminabilidade ou não eliminabilidade dos conceitos teóricos, ou o de saber até que ponto os fatos observacionais impõem limites às escolhas teóricas, teremos uma maneira de lidar com estes problemas metodológicos gerais: olhamos para casos específicos que dão uma clareza especial às questões filosóficas. As ideias adquiridas nesta área mais formalizável e delimitada podem beneficiar aqueles que se ocupam de problemas mais gerais.
Estas considerações podem de algum modo ser generalizadas. Os filósofos interessados nos problemas gerais da metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem descobrirão que abordar questões desses domínios, tal como são exemplificadas em casos particulares e concretos da teoria física, lançará luz sobre as maneiras apropriadas de lidar com questões gerais. Não podemos progredir muito na compreensão das estruturas específicas das teorias físicas parciais sem usar os recursos fornecidos por aqueles que abordam os problemas mais gerais e fundamentais da filosofia. Além disso, não podemos progredir decisivamente nessas áreas mais gerais sem ver como os métodos e soluções gerais se comportam quando se aplicam a casos específicos. E os casos específicos dos fundamentos filosóficos das teorias físicas fundamentais são, também aqui, bastante apropriados para testar afirmações filosóficas gerais.
Devemos dar um pouco de atenção a um último assunto relacionado com este. Encontramos frequentemente na bibliografia sobre o tema afirmações muito ousadas segundo as quais a física contemporânea resolveu conclusiva e decisivamente debates filosóficos muito antigos. “A mecânica quântica refuta a tese de que todos os acontecimentos têm uma causa” é um exemplo frequente. Por vezes, surpreendentemente, ambos os lados de um debate filosófico afirmam que uma teoria resolve um problema a seu favor. Assim, tem-se defendido que a teoria da relatividade geral resolve decisivamente o problema da natureza do espaço; mas há quem defenda que esta teoria refuta o substantivismo, enquanto outros sustentam que resolve o debate a favor dessa doutrina! Estas afirmações ousadas e injustificadas são enganadoras, pois os problemas são complexos e os argumentos são por vezes frustrantes na sua subtileza e opacidade. Nestas circunstâncias, as pretensões a uma vitória decisiva de qualquer tipo devem ser encaradas pelo menos com algum cepticismo.
Temos de ter um cuidado especial em relação às conclusões filosóficas derivadas de resultados da física. Por analogia com o princípio GIGO das ciências da computação (garbage in, garbage out — “entra lixo, sai lixo”), chamaremos a este o princípio MIMO: metaphysics in, metaphysics out — “entra metafísica, sai metafísica”. Não há dúvida que qualquer tese filosófica deve ser reconciliada com os melhores resultados disponíveis da ciência física, nem tão pouco que o progresso da ciência tem produzido um antídoto útil para muito dogmatismo filosófico, mas ao considerar o que a física nos diz sobre questões filosóficas devemos ter sempre o cuidado de perguntar se a própria teoria física incorpora pressupostos filosóficos. Se descobrirmos que esses pressupostos foram incorporados na própria teoria, devemos estar preparados para examinar cuidadosamente se essa maneira de a apresentar é a única maneira de acomodar os seus resultados científicos, ou se poderão haver outros pressupostos que nos levariam a derivar conclusões filosóficas bastante diferentes, caso a teoria os incorporasse.

Objetivo e estrutura deste livro

Para terminar, vou apresentar algumas considerações sobre o objetivo e a estrutura deste livro. A investigação cuidada e sistemática de qualquer um dos grandes problemas da filosofia da física é uma tarefa demorada e difícil. Um domínio dos conteúdos das teorias fundamentais da física contemporânea requer um estudo prévio de um corpo de matemática vasto e difícil, já que as teorias se formulam frequentemente na linguagem poderosa e abstrata da matemática contemporânea. À formação matemática acresce ainda o estudo dos elementos específicos da física. Além de tudo isto, a investigação filosófica requer uma formação firme em muitos aspectos da filosofia analítica contemporânea: na metafísica, na epistemologia e na filosofia da linguagem.

Tentar fazer inteira justiça a qualquer um dos problemas centrais da filosofia da física numa obra introdutória deste tipo está, obviamente, fora de questão. O objetivo é antes o de proporcionar ao leitor um mapa das áreas de problemas centrais deste domínio. Este livro centra-se naquelas questões que, do meu ponto de vista, se apresentam como as mais importantes da filosofia da física. Muitos outros tópicos interessantes quase não serão considerados, e alguns não serão mesmo abordados, com o objetivo de dirigir a atenção tanto quanto possível para as questões mais cruciais e centrais.

Relativamente aos tópicos abrangidos, ofereço um esboço ou sinopse dos aspectos fundamentais das teorias físicas que estão em interação mais profunda com a filosofia. A minha esperança é oferecer uma abordagem dos problemas suficientemente concisa e clara de modo a orientar o leitor interessado pelos caminhos, por vezes labirínticos, dos debates centrais. Os capítulos 2, 3, e 4 são complementados por um guia bibliográfico anotado. O leitor interessado em seguir com algum pormenor os temas esboçados no texto encontrará nessas seções de referências um guia para os materiais de formação básica em matemática, física e filosofia, assim como um guia para as discussões contemporâneas mais importantes sobre o problema em causa. Não se pretende que as seções de referências sejam um levantamento exaustivo da bibliografia sobre qualquer dos temas considerados (uma bibliografia por vezes muito extensa), mas antes um guia seletivo dos materiais mais úteis para conduzir o leitor, de um modo sistemático, mais longe.

Embora tenha tentado incluir nas seções de referências materiais acessíveis a quem não tem uma vasta formação em matemática e física teórica, não excluí aqueles cuja compreensão requer uma formação nessas áreas. O material que exige uma formação bastante modesta desse tipo (ao nível intermédio de uma licenciatura, digamos) está assinalado com (*). O material que exige uma familiarização mais vasta com os métodos e conceitos técnicos está assinalado com (**).

As três áreas principais que vamos explorar neste livro são a do espaço e do tempo, a das teorias probabilísticas e estatísticas do tipo “clássico” e a da mecânica quântica. Isto vai permitir-nos examinar muitas das actuais áreas de problemas mais enigmáticas e fundamentais da filosofia da física. Outra área principal só será considerada casualmente, embora seja responsável pela introdução de muitos problemas extremamente interessantes que só em parte têm sido explorados. Trata-se da teoria geral da matéria e da sua constituição, tal como é descrita pela física contemporânea. Questões que surgem quando se postula o campo como um elemento básico do mundo, ou que emergem de problemas da teoria da constituição da matéria, ou dos microconstituintes da hierarquia que nos conduz das moléculas e dos átomos às partículas elementares (e talvez mais além), ou da teoria fundamental sobre as próprias partículas elementares, só serão focados de passagem quando lidarmos com as três áreas de problemas centrais acima indicadas.

Lawrence Sklar

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Contracultura


Em plena era pós política e caótica atual, a qual fomos resignadamente dirigidos pela contra revolução neoliberal dos anos 80, disponibilizo um texto de 1974 da revista MM.

Enfatizando, texto de 1974!

Em tempos 'bolsonarescos', onde os "cordeiros violentos" (cordeiros com um sistema socioeconômico e violentos entre si) e os "ecoalternativos new age" não atacam a raiz do mal social, necessitamos urgentemente de uma nova contracultura...
 

Contracultura
A outra face da sociedade moderna
Texto publicado no “fascículo de Cultura Moderna da revista MM em junho de 1974


O repúdio das gerações jovens à “coisificação” do indivíduo produzida pela sociedade de massas, origina o fenômeno da “contracultura”, fascinante e contraditório, que aspira configurar uma nova “consciência”.
Quando a geração mais jovem começou produzir sua própria realidade, procurando diferenciar-se de seus pais, a contracultura se transformou numa verdadeira recusa de toda a ordem social existente, levantando bandeiras políticas e colocando nas formas econômicas a causa da alienação e infelicidade humanas. Esses propósitos foram veementemente manifestados nas grandes concentrações públicas, que conseguiram reunir milhares de jovens de todo o mundo.

Se um traço parece ser distinto entre a década passada (nota do Barbieri: a matéria provavelmente refere-se aos anos 60) e o começo da década presente (anos 70) é aquele que como regra geral tem sido chamado de “rebelião juvenil”. Esse conceito, amplo e ambíguo, define uma das problemáticas mais palpáveis da realidade contemporânea e se explica por meio de dois fenômenos simultâneos em sua manifestação e justapostos em suas conseqüências: a nova consciência e a contracultura.

Atrás dessas denominações genéricas e um tanto difusas há, todavia, uma realidade inquestionável e um denominador comum: a repulsa das gerações mais jovens a tudo aquilo que seja tradição, padrões estabelecidos, normas inflexíveis, valores universais e definitivamente válidos.

Como forma peculiar de manifestar sua oposição ao sistema vigente, a juventude começou a produzir uma série de fenômenos  que, em termos antropológicos entram no amplo campo da cultura: anarquia no vestir (as primeiras tentativas de cabelo comprido e roupa desmazelada realizadas pelos jovens norte-americanos da década de 50), relaxamento dos costumes e das relações (expressas plenamente com o movimento  hippy, também conhecido como “hippie”), ruptura com os padrões artísticos aceitos por anos (aparecimento da “pop”, da “op” e outras anárquicas expressões de arte contemporânea) e, por último, questionamento da ordem social e econômica imperante (a crítica social do alemão Herbert Marcuse, que fundamentou as rebeliões estudantis de Paris em 1968).

Em síntese, a contracultura procura, de uma forma ou de outra, colocar um fim na ordem aprazível, na qual se havia encastelado o mundo ocidental e abrir-se em relação a um universo de dimensões e proporções desconhecidas, que ao mesmo tempo atrai e repugna. 

Protesto contra a Guerra do Vietnam os jovens passam a contestar!

Tecnocracia e contestação



Logo ao término da Segundo Guerra Mundial, à medida que se afirmava a hegemonia internacional dos Estados Unidos, os padrões culturais dessa poderosa nação começaram a reger os desejos de todo o mundo ocidental. Assim, os idéias de “progresso sustentado”, “modernização constante”, “racionalização plena”, “planejamento absoluto” e outros similares, converteram-se em imperativos, indissoluvelmente ligados às esperanças de segurança social, felicidade individual, adequada relação entre homens e recursos, em suma, às esperanças que despertaram o fim dos horrores da guerra. 

O formidável desenvolvimento tecnológico e os assombrosos feitos da ciência, assim como o elevado nível de vida e a esplêndida satisfação de necessidades   de que desfrutou a população norte-americana durante os primeiros anos da década de 50, fizeram supor que aqueles idéias estavam a ponto de serem alcançados e que havia um único caminho para isto: a recém-institucionalização tecnocrática. Em termos sociológicos, esta é a forma em que a sociedade industrial avançada concebe todo o seu sistema organizativo. 

Segundo Theodore Roszak, o grande segredo da cega aceitação que durante muitos anos provocou a tecnocracia é a sua capacidade de convencer, sobre a verdade de três premissas que são fundamentais:

1. As necessidades vitais do homem são de caráter puramente técnico. Os requisitos da condição humana, portanto, podem ser adequadamente entendidos e resolvidos por meio de um sistema de análises e de um método operativo que se sustenta nesta afirmação.

2. A análise e a interpretação das necessidades do homem, assim como a sua satisfação programada, resultam infalíveis em 99% dos casos. Desta maneira, a tecnocracia instaura o princípio de que unicamente submetendo-se a seus ditados o homem encontrará progresso, segurança e bem-estar, inclusive ao preço de uma progressiva despersonalização e perda de responsabilidade.

3. Os especialistas da tecnocracia – habitualmente chamados tecnocratas, fazem parte de uma espécie de céu de eleitos que lhes possibilita não apenas o conhecimento das leis sociais, mas, também, e isso talvez seja o mais importante, uma elevada posição dentro do “status” existente. É fundamental, pois, alcançar, de qualquer forma, esta posição de privilégio.

Apesar do êxito inicial que tiveram esses postulados, logo a seguir algumas mentes começaram a assinalar, de forma isolada e até quase incoerente, os perigos que semelhante ordem social acarretava: perda da individualidade, alienação em função de um consumo crescente e desnecessário, incapacidade de tomar determinações pessoais e absoluta desvinculação dos centros de poder com a  massa da população.

Não obstante essas advertências, formuladas por pensadores como Norman Mailer, Herbert Marcuse, Henry Lefebre e Jean Paul Sartre, entre outros, os adultos dos anos 50 aceitaram passivamente a nova realidade social que se lhes estava impondo e deixaram a função de denúncia nas mãos de reduzidos grupos de intelectuais ou universitários. 

Alguns focos de rebeldia, marcados sobretudo pelo existencialismo sartreano começaram, não obstante, a propagar-se pelos países mais devastados da Europa e pelas cidades mais populosas dos Estados Unidos. Quem foram estes rebeldes? Como manifestaram sua insatisfação? Basicamente se tratou de artistas que utilizaram diversos meios de expressão para tornar público seu desagrado, seu “fastio intelectual” como diziam alguns.

Na França, por exemplo, o movimento existencialista encontrou seu expoente máximo na cantora Juliette Greco que, sem nenhuma maquiagem ou vestuário especial, cantava temas onde o sonho de um mundo sem guerras e livre de opressões econômicas era um tema constante.  Nos Estados Unidos, o novelista Jack Keruac e o poeta Allan Ginsberg  postularam uma possibilidade redentora através da cultura oriental, até então completamente ignorada no ocidente.

Outros nomes, mais ou menos memoráveis, poderiam ainda serem citados. O jovem James Dean, por exemplo, construiu dentro do mundo cinematográfico o paradigma do inconformismo para muitos jovens do mundo todo. Outro ator, Marlon Brando, instaurou do mesmo modo a violência incontrolável como meio de manifestar repugnância em relação à sociedade norte-americana. O quase adolescente Andy Warholl, por seu lado, destruiu os clássicos moldes da expressão plástica e inaugurou um caminho que ainda transita com singular popularidade.

Todos, entretanto, não chegaram a se constituir em mais do que precursores do que apenas 20 anos depois seria um fenômeno de dimensões universais e de proporções incontroláveis: a contracultura em nível massivo e popular. Qual era – e qual é – seu objetivo primordial? Pode-se resumir nos seguintes postulados: 

“Opor à arregimentação da tecnocracia um mundo mais espontâneo, onde os indivíduos tenham um amplo campo de esclarecimento, onde as responsabilidades individuais e sociais sejam plenamente assumidas, onde o consumo deixe de ser o centro da vida de milhões de pessoas, onde os sentimentos humanos possam ser expressos livremente, onde os instintos do homem, finalmente, possam ser satisfeitos, sem nenhum tipo de condicionamento cultural.”

Festival de Woodstock em 1969 ajuda a revelar para o mundo uma nova sexualidade.

Eros e civilização

Com efeito, desde que Sigmund Freud afirmou ser a base de toda a organização social o controle do “princípio do prazer” em nome da civilização, foram muitos os estudiosos que postularam a necessidade de que o homem, para ser autenticamente tal, devia livrar-se das pressões provocadas pelas sociedades que ele mesmo criara. 

Assim, o psicanalista, Wilhem Reich foi um dos primeiros, da década de 30, em insistir sobre a necessidade  de uma absoluta liberdade sexual: abolição da relação por casal, substituindo-a pela relação múltipla; ruptura com tabus sobre adultério e virgindade; liberação das travas que, através do sexo, a sociedade impõe, obstruindo o desenvolvimento da mulher; e reconhecimento humanitário da homossexualidade e bissexualidade em lugar de puni-las legalmente. Em suma, um catálogo de propostas de liberdade irrestrita na ordem erótica que, segundo afirmava Reich, haviam de conduzir à libertação total do ser humano.Outro adulto, científico também, formado muito intimamente com a escola freudiana, é o alemão Herbert Marcuse, que recuperou como centro de seus estudos a oposição entre Eros e a Civilização  e cujos escritos políticos foram a bandeira teórica das rebeliões estudantis de Paris em 1968.

Mas, seria na volumosa obra de Jean Paul Sartre que essas – e outras – afirmações contra um regime social que os estudiosos consideram injusto, encontraria sua mais explosiva formulação e seus primeiros resultados práticos.

A força com que essas teorias se afirmaram entre a juventude dos anos 50 foi expressa por meio de profundas cabeleiras masculinas, os primeiros sinais de descuido no vestir, os tímidos intentos de uma moral menos puritana e mais liberal, o nascimento dos movimentos femininos de liberação e, muito especialmente, as expressões artísticas que denunciavam como complacentes e alienadas tudo o que havia sido feito até então.

Autores como Jean Genet, Albert Camus, Eugene Ionesco, Samuel Becket e os já mencionados Keruac e Ginsberg, expressaram através de suas obras teatrais, seus poemas e suas novelas, essa sensação de absurdo e essa espécie de insatisfação total ante os termos em que se concebia a vida na sociedade ocidental. Em todas as produções, como aríete, o sexo era o tema dominante.

O congestionamento para chegar ao Festival de Woodstock.

A explosão juvenil



Mas, em mais de um sentido, essa atividade contra cultural continuava sendo eminentemente “cultural”. Eram produzidas por homens adultos e consumidas por intelectuais sofisticados. De fato, permanecia marginalizada em cenáculos de especialistas e não alcançavam nenhum tipo de transcendência massiva.

Foi necessário, pois,  que a geração mais jovem, a que nasceu por volta de 1940, começasse a produzir sua própria realidade, procurando diferenciar-se de seus pais. Nesse momento a contracultura se transformou numa verdadeira recusa de toda a ordem social existente, mas não fez, como no caso do existencialismo, em nome de um mero protesto individual, mas sim levantando bandeiras políticas e colocando nas formas econômicas a causa da alienação e infelicidade humana.

A quase ingênua rebeldia do Rock’n’Roll deixou lugar à revolução musical simbolizada pelos Beatles. Sons novos, ritmos incoerentes, bailes sem normas, canções com letras onde o amor livre e o relacionamento com a natureza eram uma constante, identificaram-se com o uso de roupas  não convencionais, com impressionantes cabeleiras e com atitudes desconcertantes.

Ao mesmo tempo, os setores mais inconformistas  procuraram segregar-se do corpo social que com relativa elasticidade havia acabado por aceitar e absorver aquilo tudo simbolizado pelos Beatles, formando pequenas comunidades, de autonomia autossuficiente, onde colocavam em prática uma série muito confusa de noções que caíram sob o denominador comum de “hippismo”.

Simultaneamente, também o mundo da arte acadêmica rompia as comportas e os movimentos radicais (pop, op, cinético, etc.) começaram a suceder-se vertiginosamente. As drogas como estimulantes na obtenção de sensações desconhecidas e a busca de verdades absolutas nas tradições orientais do budismo e a cultura foram, finalmente, os pontos culminantes e unificadores dessas tendências díspares.
 


Um dos muitos ônibus psicodélicos dos anos 60 sugerindo a vida em comunidade.

Um balanço revelador



Que é, em suma, o que trouxe de novo a contracultura?



Em tal sentido, o Institute of Social Research (Instituto de Pesquisa Social), de Nova York elaborou o seguinte esquema que, a título de balanço provisório, tenta traçar um sintético panorama das regaras abarcadas pela contracultura e seus efeitos mais visíveis na vida cotidiana:

1. Uma arte em caos permanente.
À convencional visão da arte ordenada e organizativa, a contracultura apôs, com melhores resultados, a noção da anarquia e o caos como fundamentos da produção artística.

2. Uma moral psicodélica.
Nada do que foi dito teria sido possível sem o prévio aparecimento de uma nova moral, mas essa também não teria se consolidado se não tivesse havido no terreno artístico a experiência psicodélica. A utilização consciente das drogas, a investigação a fundo dos sentidos, a ruptura do mundo das formas, cores e sons, permitiram aos contestatários suspeitar que a moral devia estar regida por valores em constante movimento.

3. O sexo como instrumento político.
A partir de Freud e de acordo com as investigações de vários psicanalistas, considerou-se que a repressão sexual da sociedade ocidental encobria sob suas normas morais e religiosas uma verdadeira repressão ideológica. A contra cultura arremeteu, através da defesa de todo tipo de sexualidade e, especialmente, dos movimentos de liberação feminina, contra a concepção, afirmando-se inequivocamente a “a função política do sexo”.

4. A busca do infinito perdido.
Tanto a análise do interior da sociedade como as informações oferecidas por especialistas em cultura oriental permitiram que a contra cultura levantasse como bandeira de luta a necessidade de admitir a existência de um vazio “de um infinito aterrador, onde o homem encontra a medida de si mesmo e dá um sentido verdadeiro à vida”.

5. A economia a serviço do homem.
Este é possivelmente o campo onde a contracultura logrou menos resultados diretos. Com efeito, nem as comunidades hippies, nem os atos de rebeldia estudantil, propuseram um sistema econômico que substituísse os existentes, limitando-se a criticar os resultados que estes motivam. Em troca, essa crítica radical e violenta originou uma série de revisões nos planos de economia mundial que, a título provisório, parecem indicar uma tendência generalizada em direção à “humanização” da economia. (Nota do Barbieri: como hoje bem sabemos o capitalismo reagiu e os neo conservadores no poder estão conseguindo anular todas as conquistas liberais deste período!)

6. Desmistificação da cultura.
Este item, segundo os especialistas, foi onde “se alcançou os resultados mais eficazes e revolucionários”. Contra o que consideram uma noção elitizante da chamada Alta Cultura, o movimento juvenil, dizem, “impôs, uma  concepção definitivamente democrática onde a cultura sem letra maiúscula e sem qualificativos é patrimônio comum a todos os homens”. Não se trata, acrescentam, da conhecida “cultura de massas” mas, pelo contrário, “de uma cultura destinada a satisfazer autenticamente as necessidades expressivas do ser humano”.

7. Objetividade contra mitologia.
Como resultado total da tarefa destruidora empreendida pela contracultura, a objetividade aparece como a contrapartida dialética da mitologia fundamentada na tecnocracia. Assim, enquanto as gerações adultas continuam crescendo em eficácia, no progresso constante, nas vantagens de uma crescente industrialização, a gente jovem renega não apenas essas crenças; consideram-nas “mitos modernos”, que ocultam a dinâmica da história, subtraem do indivíduo a capacidade de fabricar seu próprio destino, oferecem uma visão pessimista da realidade. 







Foto emblemática do Festival de Woodstock que acontece no auge do Movimento Hippie.

Exploração da utopia



Como todo movimento social que se define no curso da ação social e que justifica, “a posteriori”, sua inexistente base ideológica, a contracultura alcançou uma espécie de clímax em que tudo parecia possível e começou logo a declinar, a retrair-se em seus próprios efeitos. Esse momento culminante foi o marcado pelas rebeliões estudantis ocorridas na Europa durante 1968 e cujos ecos tardios (por exemplo o festival de Avándaro) na América Latina, apenas lograram ocultar o acaso de uma década marcada  a fogo pela ideia da revolução.

Depois deste estalo brutal, a contracultura começou a depurar suas próprias filas, a integrar-se pacificamente no sistema que combate e ao qual impôs, sem dúvida, radicais transformações. Chegou então a hora dos balanços, do acerto de contas. E é nesse processo que se encontram atualmente seus teóricos mais importantes. Herbert Marcuse, por exemplo, dono de uma atividade criadora assombrosa, foi o primeiro a revisar muitas de suas concepções e a formular novas propostas a favor de um mundo melhor. Os radicais norte-americanos deixaram para trás o arrebatamento de Ginsberg e procuraram, através dos trabalhos de Noam Chomsky, uma base teórica que torne operativa a contracultura espontânea de estudantes e gente jovem em geral. Os artistas, que com tanto fervor romperam fronteiras durante a década passada, começaram a fixar novas metas e, a moral, tão ferozmente combatida, parece renascer sobre a base de conteúdos diferentes e formas originais.



Tudo indica, em seu conjunto, a síntese das experiências vividas e a formulação, partindo delas, de objetivos transformadores em escala mundial. O processo se verifica à margem de organismos oficiais e de sistemas institucionalizados, não reconhece nenhuma orientação precisa e se identifica, em todas as partes, como uma nova e vigorosa exploração da utopia.
Texto publicado no
fascículo de Cultura Moderna
da revista MM em junho de 1974